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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A anorexia

Considerando que atualmente existe uma série de vertentes que buscam uma compreensão para os sinais da anorexia, o texto a seguir, refere-se á uma parcial reflexão seguindo o pensamento psicanalítico.
            Através dele, podemos também compreender a anorexia como um conjunto de sintomas relacionados a um funcionamento psíquico complexo, não o reduzindo, portanto a uma patologia primária e sim como uma conseqüência de algo que provem de um local muito mais profundo.
            Inicialmente através de Freud, o trabalho trará uma relação da anorexia com os estudos da histeria, com a melancolia, com a sexualidade e com a fase oral ou canibalesca. Mostrando também o quanto os sintomas anoréxicos podem estar associados a um mau vínculo entre a mãe e a doente (considerando os pensamentos kleinianos e de autores contemporâneos).
            Inicialmente Freud considera inadequada a prática da psicanálise no tratamento da anorexia referindo que ela somente é efetiva quando "(...) a pronta eliminação dos sintomas não seja a tarefa primordial do médico, como na anorexia" (Freud, 1904:237). Posteriormente volta a afirmar que "(...) não se deve recorrer à psicanálise quando se trata de eliminar com rapidez fenômenos perigosos, como, por exemplo, na anorexia histérica" (Freud, 1905 :248).
Em 1893, nos Estudos sobre a histeria, Freud e Breuer consideraram a presença de
“vômitos crônicos e anorexia, levados ao extremo de rejeição de todos os alimentos” (p.42)
como um dos principais sintomas que estariam presentes na histeria. Sua insistente recusa alimentar foi vista como exemplo típico de uma forma de abulia, tão presente nas histéricas.
A magreza decorrente da restrição alimentar era entendida por Freud como um sintoma conversivo e, portanto, estaria claramente ligada à histeria, não podendo se separar
da estrutura histérica.
Uma relação entre a anorexia e a histeria se estabelecia e se justificava pela intensa carga afetiva e manifestações no corpo, que eram naquela época os principais meios através dos quais as histéricas evidenciavam seu sofrimento. De acordo com a hipótese freudiana, o excesso de afeto se transformava em repulsa e era deslocado para os alimentos que passavam então a serem evitados.
Em 1895, Freud estabeleceu a relação entre anorexia e melancolia, e por outro lado, entre melancolia e histeria, considerada como anestesia sexual.  Foi neste trabalho também que a anestesia sexual apareceu como sendo análoga à anorexia nervosa, evidenciando a relação entre a aversão à sexualidade e a repulsa alimentar.
            A partir daí, a melancolia pôde entrar em cena na compreensão da anorexia, já
que a ausência de apetite sexual, na melancolia, podia ser equiparada à perda de apetite na
anorexia. A falta de apetite estaria presente, portanto em sua vertente alimentar e sexual,
principalmente nas jovens nas quais a sexualidade não teria se desenvolvido, isto é, estaria
recalcada, o mesmo acontecendo com a histeria e a anestesia sexual que a caracteriza. O
recalque da sexualidade na melancolia e a alta incidência da anorexia no sexo feminino
reforçavam a relação entre esses quadros e a histeria.
     Foi somente muitos anos depois, que Freud entendeu o “distúrbio do apetite como resultado de algum processo na esfera da sexualidade” (p. 133). Ao falar sobre a perda do apetite do Homem dos Lobos, Freud mencionou a anorexia nervosa, referindo-se a esta como uma neurose característica das meninas, cuja irrupção se daria na puberdade.

"É sabido que existe uma neurose nas meninas que ocorre numa idade
muito posterior, na época da puberdade ou pouco depois, e que se exprime à
aversão à sexualidade por meio da anorexia. Essa neurose terá que ser
examinada em conexão com a fase oral da vida sexual  (Freud, 1918
[1914]: 133).

           Nesta citação Freud atribui uma relação entre a anorexia e a fase oral ou canibalesca do desenvolvimento libidinal. È nesta fase que Freud estabeleceu que a função nutricional estaria atrelada à atividade sexual, com um mesmo objeto servindo às
duas funções.

“A primeira dessas organizações sexuais pré-genitais é a oral, ou se
preferirmos, canibalesca. Nela, a atividade sexual ainda não se separou da
nutrição, nem tampouco se diferenciaram correntes opostas no seu interior.
O objeto de uma atividade é também o da outra, e o alvo sexual consiste na
incorporação do objeto – modelo do que mais tarde irá desempenhar, sob a
forma da identificação, um papel psíquico tão importante.” (1905, p. 186)

            Nesta mesma época, em 1915, Freud escreveu Luto e melancolia (1917 [1915]), e
apontou a recusa de alimentos como sendo decorrente de uma melancolia severa. O sujeito,
pela impossibilidade de investir libidinalmente em novos objetos, ficaria reduzido ao seu
próprio eu, se autoconsumindo. Portanto, a recusa de alimentos, que poderíamos entender
como anorexia, seria um sintoma presente em formas graves de melancolia e teria relações
com a fase oral ou canibalesca do desenvolvimento libidinal.
            Em resumo, pode-se dizer que para Freud a anorexia eclodiria no período da puberdade e viria denunciar um conflito, em que a aversão à sexualidade remeteria à idéia
de repulsa e à perda da libido, que em última instância ocasionaria a perda do apetite,
constituindo-se, portanto, para ele num distúrbio oral.
Depois de muitos anos, a partir da década de 60, que diversos autores deixam de priorizar a relação da anorexia com a fase oral e conflitos intrapsíquicos e passam a considerar as relações interpessoais, dando especial ênfase à intensa ligação mãe-filha.
            Considerando a leitura Kleiniana, o comportamento anoréxico foi compreendido como expressão do narcisismo patológico, em que a mãe não só não é reconhecida como parte separada da filha, como também é sentida como não tendo nada bom a oferecer. A inveja primária é tão perniciosa que destrói toda a relação, não havendo o seio bom uma vez que sua existência significaria o reconhecimento de algo bom fora da filha que pode ser intolerável. A anorexia nervosa seria concebida como um ataque invejoso à mãe e ao seio materno, com o objetivo de negar a dependência e a possibilidade de perda do objeto.
            A típica mãe da anoréxica seria descrita como possessiva opressora e superprotetora e, sendo assim, incapaz de ver sua filha como um objeto separado dela. Essa relação de dependência com a mãe impossibilitaria que a filha fizesse uso de seu corpo como um objeto de prazer e criaria um tipo de vínculo que dificultaria qualquer possibilidade de autonomia, seja de pensamento ou de ação. Assim, o reconhecimento das necessidades do corpo e sinais físicos estaria comprometido por esta falta de autonomia.
A impossibilidade em obter controle sobre si e sobre sua mãe acarretaria no controle do próprio corpo como forma de expressar a dificuldade de separação do objeto materno.
Se a vida da anoréxica é controlada pela mãe, lhe resta manter seu corpo sob o seu próprio domínio.
       O corpo passa a ser o receptor de todo ódio e aversão vividos nas relações objetais pelo sujeito. Desta forma, a evitação de alimentos, o número exato de calorias ingeridas, jejum, vômitos, exercícios extremados e a manutenção de um baixo peso através do emagrecimento representariam, portanto, esta tentativa de controle sobre o objeto mau internalizado, identificado com seu corpo.
A anoréxica apresenta uma à inabilidade de reconhecimento da fome, fadiga, frio, calor, assim como os estados afetivos em geral. Comumente ela se sente atrelada ao outro, impossibilitada de reconhecer seu próprio desejo. A postura desafiadora e de poder que apresentam em seu corpo viria apenas encobrir o sentimento de impotência vivido por ela.                         Evitar o fato de que têm necessidades tanto físicas, como a alimentação, por exemplo, quanto em relação ao outro é a chave da existência, pois em suas fantasias, não precisar de nada significaria ser completamente auto-suficiente e independente e as preveni-las-ia dos
sentimentos de angústia que aparecem frente à separação, sobretudo a separação da mãe.
Ao comer, ela se defronta com a separação e de que é mortal. Então, ao não comer, nega a morte e a separação da mãe. Esta concepção parece apontar para uma predominância da pulsão de morte, numa busca regressiva de prazer, evidenciando uma espécie de confusão entre corpo/desejo materno.
            O alimento representaria o objeto exterior e a conflituosa relação estabelecida com ele seria também um contraponto entre o que viria defender o sujeito contra seu medo de ser invadido pelo objeto e de que dele possa necessitar, e a proteção do vazio interno e do risco de perder esse objeto-eu.
 Assim se vê, o poder conferido ao objeto pela anoréxica e a ameaça que ele representa o que interfere na possibilidade de obter prazer na relação com o outro. A proximidade ao objeto representa uma ameaça narcísica na medida em que fragiliza a integridade do ego.